Foto: Patrícia Santos / Flickr Commons

32 anos do massacre do Carandiru: Disputas e consequências

A chacina do Carandiru, que ocorreu em outubro de 1992, foi a maior chacina das prisões brasileiras, tendo o registro oficial de 111 mortos, segundo a polícia. Entretanto, esse número é contestado por pesquisadores, grupos de direitos humanos e pelos próprios presos na época, que, ao avaliarem os impactos do episódio, calculam o dobro das mortes em relação aos dados do Estado (Machado; Machado, 2015; Onodera, 2007; Salla, 2007; Varella, 2005).

No ano de 2024, o acontecimento da chacina do Carandiru completa 32 anos, com muitas consequências na segurança pública, questão prisional e na sociedade paulista. Desta forma, as disputas pela memória e história do massacre é colocada no presente, com discursos e práticas que normalizam os problemas e produz mais desinformação sobre temas e eixos importantes para o Brasil, havendo a necessidade de conhecimento para esclarecer os fatos e construção do pensamento crítico.

Dessa forma, o Observatório de Segurança Pública da UNESP tem como objetivo, uma série de textos sobre este caso, compartilhando pesquisas em âmbito público. Assim, este texto tem o intuito de contextualizar o massacre no Carandiru de 1992, analisando sobre algumas causas e consequências da chacina até o presente, através da revisão bibliográfica e outras formas de conhecimento, como nas letras de músicas que narravam as experiências desse fato.

Dia 02 de Outubro de 1992

Amanheceu com Sol, dois de Outubro
Tudo funcionando, limpeza, jumbo
De madrugada eu senti um calafrio
Não era do vento, não era do frio
(Racionais, MC´s, 1997)

De todos os episódios e eventos que envolvem o tema da segurança pública no Brasil, o mais famoso que foi noticiado internacionalmente foi o massacre no complexo do Carandiru em 1992. Na ocasião, o Carandiru foi um dos fatores mais importantes para a revolta geral da sociedade civil, principalmente os presos. A Casa de detenção de São Paulo ou Carandiru, nome do bairro em que ela está na zona norte de São Paulo, foi um complexo prisional construída em 1920 mas reformada ao longo dos anos, ganhando notoriedade a partir da década de 1950 com o acréscimo de outros tipos de penitenciárias, recebendo o status de maior presídio da América Latina (ONODERA, 2007).

Ao todo, o complexo do Carandiru tinha 7 pavilhões, que eram divididos por números, havendo os seguintes pavilhões: 2, 4, 5, 6, 7, 8, 9. Eles eram separados institucionalmente pelos procedimentos jurídicos, a partir dos crimes realizados pelos detentos, além de organização própria dos guardas penitenciários (Varella, 2005), havendo uma superlotação nos últimos anos de vida da instituição, como relata (Onodera, 2007, p.12): “Com isso as cadeias continuavam a encher resultando em superlotação. O Carandiru, que deveria abrigar 3,2 mil presos, na data do episódio, acolhia quase 7,2 mil presos, sendo 2000 só no Pavilhão 9, distribuídos em 248 celas, ou seja, oito presos em média por cela”.

Segundo a historiografia sobre o tema (Machado; Machado, 2015; Onodera, 2007; Salla, 2007; Varella, 2005) o massacre do carandiru foi a maior chacina da história brasileira, com 111 mortos3 segundo os dados oficiais da época. No dia 02 de outubro de 1992 ocorreu uma rebelião no pavilhão 9 em meio a uma partida de futebol. A gênese da chacina foi causada por uma briga de dois homens por motivos banais (Onodera, 2007; Varella, 2005), e desencadeou conflitos gerais por todo edifício do pavilhão 9, até ser instaurada uma rebelião e forçando a direção clamar a intervenção da polícia militar.

O motim saiu do controle e as forças dos carcereiros não conseguiram manter a ordem, e desta forma, o diretor José Ismael Pedrosa4 acionou as autoridades, chegando mais de 300 policiais de diferentes unidades especiais fortemente armados liderados pelos comandante das instituições policiais de São Paulo:

No total chegaram cerca de 325 policiais, vindos de diversas guarnições, incluindo o batalhão de choque, a GATE (Grupamento de Ações Táticas Especiais), comandado pelo capitão Wanderley Mascarenhas, da COE (Comando de Operações Especiais), comandado por Ariovaldo Salgado e o grupo especial ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). No meio dos policiais estava o coronel Ubiratan Guimarães, na época Comandante do Policiamento Metropolitano, e o tenente coronel PM Luiz Nakaharada, na época no Comando do Policiamento de Choque de São Paulo (Onodera, 2007, p.3-4).

Além da chacina dentro do complexo, houve uma disputa de narrativas para saber os fatos que marcaram essa história (Silva; Santos; Ramos, 2019). Setores conservadores junto com a polícia militar justificam os ataques para se defender da rebelião e reação dos presos, justificando os 111 mortos daquele dia. Já a sociedade civil por parte de grupos de direitos humanos, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e até os sobreviventes dos presos5 denunciaram os discursos da PM, acusando os policiais de terem, como o único objetivo, matar os presos e acabar com a rebelião, além das forças policiais que mentiram sobre os relatos da chacina (Ferreira, Machado; Machado, 2012; Machado; Machado, 2015; Salla, 2007).

Os impactos foram sentidos momentos após o fim do motim. Em 1992 foi um ano peculiar na história política brasileira. O até então presidente Fernando Collor sofreu um processo de impeachment e no dia 02 de outubro o vice Itamar Franco assumiu o poder do executivo. Atrelado a isso, no dia 03 de outubro iria ocorrer o 1º turno das eleições municipais, com a vitória de Paulo Maluf naquele pleito. De imediato, as ações da chacina corresponderam com uma vitória das forças conservadoras em São Paulo6 com a vitória de Maluf e com Fleury no governo do estado (Machado; Machado, 2015). Houve duras críticas de órgãos internacionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), que criticaram o estado brasileiro pela postura de seu braço armado e a demora de punir os culpados (Ferreira; Machado; Machado, 2012).

O único condenado do caso Carandiru foi, coronel Ubiratan Guimarães, ele foi responsável em liderar a repressão no dia 02 e após anos de investigações e problemas nas justiças comum e militar (Ferreira; Machado; Machado, 2012) foi condenado por 102 homicídios, 5 tentativas de homicídios pegando 632 anos de prisão7, podendo recorrer a sentença em liberdade (Onodera, 2007).

O coronel conseguiu alguns recursos da justiça e não cumpriu sua pena, além disso, conseguiu ser eleito deputado após sua aposentadoria e até seu assassinato em 2006, o caso ainda estava em trâmite na justiça, não sendo punido. Outros processos foram abertos para julgar os policiais presentes, mas ao passar dos anos, nenhuma denúncia foi julgada e concluída, transformando o massacre do Carandiru em um caso sem ‘justiça’. Além disso, ele conseguiu se eleger como deputado estadual em 2002, sob o número da legenda eleitoral 14.111, uma associação direta com os 111 mortos do massacre de 1992, utilizando da tragédia como estratégia política para angariar votos de setores conservadores e militares da sociedade paulista.

O Carandiru foi desativado por completo em 2002, os milhares de presos que estavam lá foram transferidos para outras cadeias, fruto da política de expansão e interiorização que os governos do PSDB 8fizeram na década de 2000, como estratégia de desconcentrar as massas carcerárias em um mesmo local na capital paulista, distribuindo em novas prisões pelo norte, centro e oeste do território estadual de São Paulo (Dias, 2011).

Os impactos sociais e culturais foram de grande notoriedade, movimentos contra o abuso policial, sobre a situação das periferias e o sistema penal ganharam mais força após os ataques de 1992. O melhor exemplo para retratar o episódio do Carandiru é a música “Diário de um Detento” (Racionais MC´S), uma poesia com ritmo do Rap que narra a vida de um homem condenado a cumprir sua pena e conta suas experiências na casa de detenção de São Paulo no massacre de 1992. “Dessa forma, pode-se identificar na canção a postura dos compositores: de luta contra a injustiça, desigualdades sociais e raciais, além de sua posição questionadora quanto ao sistema penitenciário brasileiro” (Pereira; Moro; Costa, 2017, p.657).

Essa música trouxe uma nova narrativa através da cultura sobre a memória que se têm do presídio e suas contradições, abordando sobre o papel da justiça com os pobres e o racismo presente na vida da população negra, levando em conta os problemas sociais que produzem a desigualdade social no Brasil. Neste trecho a seguir, o narrador relata o estopim daquele dia, a partir de uma briga entre dois presos que desembocou em um confronto generalizado e por fim, a entrada das forças policiais massacrando os presos:

[…] Dois ladrões considerados passaram a discutir
Mas não imaginavam o que estaria por vir
Traficantes, homicidas, estelionatários
Uma maioria de moleque primário
Era a brecha que o sistema queri
Avise o IML, chegou o grande dia […]
Diário de um Detento

(Racionais MC´s, 1997).

No próximo trecho, a música retrata as moralidades e contradições na relação do urbano, nas conexões entre a cidade e o complexo do Carandiru, discutindo o ódio, religião e o processo de estranhamento do Outro, construindo o sujeito “preso” em inimigo, rejeitado e excluído:

Ratatatá, mais um metrô vai passar
Com gente de bem, apressada, católica
Lendo jornal, satisfeita, hipócrita
Com raiva por dentro, a caminho do centro
Olhando pra cá, curiosos, é lógico
Não, não é não, não é o zoológico
Diário de um Detento
(Racionais MC´s, 1997).

Concluindo, o massacre do Carandiru é um exemplo das contradições das políticas de segurança pública por parte dos elementos dos discursos e disciplinas que estão enraizados no problema da “criminalidade”, violência e desigualdade. Os discursos a favor das ações policiais fizeram do triunfo das alas conservadora de São Paulo, obtendo uma vitória política com as eleições, elevando micropoderes nos setores conservadores, como o poder das polícias e não punindo os responsáveis pela chacina de 1992.

Por fim, após 32 anos, muitas histórias e disputas de discursos estão em alta, devido aos conflitos entre forças conservadoras e críticas, pautando o presente, em meio ao período eleitoral. Com isso, a memória do Carandiru não deve ser perdida, muito menos esquecida. Ela foi a consequência de problemas e processos da nossa sociedade, que deve ser compreendida para evitar suas causas e consequências, para superar essas contradições para um novo patamar civilizacional.

Referências


DIAS, Camila Caldeira Nunes. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. 2011. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

FERREIRA, Luísa; MACHADO, Marta R. de A.; MACHADO, Maíra Rocha. Massacre do Carandiru: vinte anos sem responsabilização. Novos estudos CEBRAP, n. 94, p. 05-29, 2012.

MACHADO, Maíra Rocha; MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Carandiru não é coisa do passado: um balanço sobre os processos, as instituições e as narrativas 23 anos após o massacre. 2015.

ONODERA, Iwi et al. Estado e violência: um estudo sobre o massacre do Carandiru. 2007. PEREIRA, Maiara Cano Romero; DE LIMA MORO, Naiara; COSTA, Natalina Sierra Assêncio. FORMAÇÃO IDEOLÓGICA E OS EFEITOS DE SENTIDO PRESENTES EM DIÁRIO DE UM DETENTO, DE RACIONAIS MC’S, 2017

RACIONAIS, MC´s. Diário de um detento. Sobrevivendo no Inferno. 1997.

SALLA, Fernando. De Montoro a Lembo: as políticas penitenciárias em São Paulo. Revista Brasileira de Segurança Pública , v. 1, n. 1, 2007.
 
SILVA, Uvanderson Vitor da; SANTOS, Jaqueline Lima; RAMOS, Paulo César. E A POLITIZAÇÃO DAS MORTES NO BRASIL, 2019.

VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. Editora Companhia das Letras, 2005.

Notas

1 Esse artigo é fruto das pesquisas feitas pelo Observatório de Segurança Pública da UNESP (OSP), organizada em uma série de artigos, que será disseminado pelo site e redes sociais do OSP.
2 Doutorando do Programa de Pós Graduação em Sociologia na UFSCar. Mestre em Ciências Sociais na UNESP de Marília. Pós Graduado em Políticas Públicas e Projetos Sociais no SENAC/SP. Pesquisador do Observatório de Segurança Pública na UNESP.
3 Esse número é até hoje contestado pelos pesquisadores, autoridades e os próprios presos, afirmando que foram muito mais mortos.
4 José Ismael Pedrosa foi diretor da Casa de Custódia de Taubaté no ano de 1993, após as repercussões no episódio do Carandiru. O Primeiro Comando da Capital surgiu nesta prisão em Taubaté, sob a gestão de José Ismael Pedrosa, sendo ele responsável pelos maiores acontecimentos pela questão prisional na década de 1990.
5 Uma comissão de presos afirmou que o número total de mortos foi de 220 e não 111 (Onodera, 2007, p.4).
6 Para saber mais sobre a relação da direita e o Carandiru ver a obra de Danilo Cymrot “Da chacina a faxina: O massacre do Carandiru e a vitória eleitoral da direita em 1992”.
7 Foi a maior condenação da história brasileira, contabilizando 6 anos para cada homem assassinado.
8 Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).

Mestrando do Programa de pós graduação em ciências sociais (stricto sensu) na Universidade Estadual Paulista (UNESP) - campus de Marília, na linha 1: Pensamento Social, Educação e Políticas Públicas (2021-2023). Foi bolsista FAPESP, produzido uma pesquisa sobre as disputas de poder entre o PCC e a PM na chacina de 2015 em Osasco (2020).