Por Gustavo da Silva Peres
Introdução
Após um período de relativa baixa que separa os atentados ocorridos na França em meados de 2015, – conforme relatórios analisados da Polícia da União Europeia – e os de outubro de 2020, o professor de história Samuel Paty foi decapitado por exibir charges do profeta do islã em uma sala onde havia uma aluna muçulmana. Ofendido, o pai da aluna inicia protestos pela demissão do professor, junto a um conhecido ativista islamista no país, Abdelhakim Sefrioui. Alguns dias depois Abdoulakh Anzorov, jovem checheno de 18 anos, refugiado na casa de uma irmã que anteriormente se juntou ao Estado Islâmico, foi visto perguntando pelo professor a dois alunos da escola do subúrbio de Conflans-Sainte-Honorine, em Paris. O suspeito foi alvejado e morto. Em seu celular havia vídeos de confissão, imagens do professor, encontradas em suas redes sociais, e planejamento do crime. A conexão de suspeitos é indireta, mas a polícia prendeu entre os 11 suspeitos parentes da aluna e outros membros militantes do islã por promoção de atmosfera de ódio nas redes sociais (CEP, 2020, p. 01).
Este, e outros atentados ocorridos entre outubro e setembro de 2020, coincidem com o nascimento do Profeta Maomé no calendário islâmico. E ao final de outubro o Estado Islâmico conclamaria em vídeo mais ataques na França (CEP, 2020, p.03). O país vive um estado de emergência proferido após 2015 e reforçado após 2017. Uma dentre as medidas de emergência é o fechamento, por não mais de seis meses, a ser decretado pela prefeitura local, das mesquitas (FRANÇA, 2018). Com o rescaldo de novos atentados as medidas que terminavam em 2020 podem agora ser novamente reinteradas pelo Parlamento. E a conexão feita com instituições mais ortodoxas que recebam financiamento estatal pode levar a maior atenção sobre elas, o ministro da defesa e o presidente falam até mesmo em dissolução[1].
Desde meados de 2005 o território europeu passou a ser alvo de maiores ataques terroristas inspirados em religião[2]. Mas o certo é que a escalada de atentados após 2012 colocaram a securitização da identidade muçulmana no cerne do problema. Conforme Daniela Sampaio (2010), a França sempre dissolveu a diferença na identidade nacional. A diferença de outros processos integrativos é que a multiculturalidade aqui desaparece, no Brasil, por exemplo, as culturas imigrantes foram abraçadas num processo de hifenização, a cultura japonesa, italiana, portuguesa, etc. se mantiveram em um processo de afetação mútua com a brasileira (SAMPAIO, 2010, p. 93), cultura ítalo-brasileira, nipo-brasileira, nipo-brasileira.
A França reforça um saber que reivindica a identidade nacional, através da educação, da mídia, do direito, o direito internacional inclusive. O Estado preza pelo islamismo apenas como religião, e sendo está uma religião tardia no modelo laico, não possui patrimônio para autossustentação como o cristianismo e o judaísmo que estavam presentes antes da completa cisão entre Estado e religião (SAMPAIO, 2010, p.38). Isso resulta na falta de representação política da identidade no país vista na falta de parlamentares muçulmanos, na dificuldade de construção de mesquitas, na ausência de instituições de ensino islâmicas autônomas, etc.. Estamos falando aqui da segunda maior religião do país. Sustentamos assim, um quadro explicativo multicausal, com cerne na passagem do governo conflituoso – no sentido de sua não federalização pela religião – da população muçulmana para a administração através dos meios que agem sobre esta população, ou seja, o que Foucault estudou como dispositivo de segurança (2008, p. 03 – 30).
Os valores do Estado-nação clássico
Como caso clássico de Estado-nação, A França, principalmente diante de uma crise na homogeneidade da identidade que protege esse modelo, amplia o peso para a identidade unidimensional republicana e suprime a multidimensionalidade cultural (GOLDBERG, 2019, p.87). A intersubjetividade que molda essa identidade nacional já vem capturando, inclusive, a luta contra o terrorismo como parte do romance da nação. Marc Ferro (2013) utiliza este termo para fazer referência àquela história “ortodoxa” que faz a composição da identidade nacional em feitos militares e políticos. Mitos fundantes, linearidades entre o povo atual e as civilizações clássicas, as conquistas do império napoleônico, a forma como o país se comportou no período nazista, e consequentemente na segunda guerra, dentre outros temas que devem ser ensinados na escola como componentes de uma mentalidade nacional.
Sendo um dos três ministérios que estruturam as estratégias de contrarradicalização na França, o ministério da Educação, junto à Justiça e Interior, acata, além do ensino universal de valores independentes de etnia e nacionalidade, complementos como aulas de formação cívica após os atentados de 2015, conforme Joana Lopes os investimentos no setor são maciços:
O Ministério prevê ainda escolaridade obrigatória até aos 16 anos. Parece-nos que a área educacional é mais valorizada para o combate contra a ideologia extremista e os dados estatísticos da CIA de 2013 demonstram inclusive um gasto substancial neste setor: 5.5% do PIB francês é alocado para a área da educação e, a nível mundial, é o 43º país com maior despesa nesse setor (LOPES, 2017, p.87).
A França, além de caso clássico de Estado-nação foi berço da revolução que deu ao mundo a semente da atual Declaração Universal dos Direitos Humanos, de onde decorre, sobretudo, em seu ensino a transmissão de valores universais. Tanto em 2015 quanto em 2020 o direito à liberdade de expressão foi trazido à tona. O Charlie Hebdo é um jornal com histórico de pensamento estacionado sobre uma reação libertária, uma espontaneidade de revolta não institucionalizada, que se aninhava no país em 1968 (MORAES, SANTOS, 2016, linhas 4-8). Conforme Moraes e Santos (2016) outros medias como Le point, “líder de vendas na França” já contou com várias capas que foram percebidas como “islamofóbicas”, acompanhados pela revista Marianne e o jornal L’Express. A reprodução de discursos, proposições morais e políticas que tornam o muçulmano bode expiatório de todos os problemas do país, tanto na direita quanto na esquerda, tiveram amplitude maior em 1980, em nível tanto federal quanto municipal, e levaram o partido anti-imigração Frente Nacional ao poder em 1983; à época 20 jovens imigrantes foram feridos ou mortos pela segurança nacional (MORAES, SANTOS, 2016, parágrafo 11-12). Ainda conforme o estudo de Moraes e Santos, a hashtag Je suis Charlie rivalizava em 2015 com uma movimentação mais ponderada, a hashtag Je ne suis pas Charlie era problematizadora, tinha clareza política de exposição e procurava mensurar relativismos culturais.
A visão de liberdade de expressão é também, justamente, um dos entreves às pressões que a França renova após 2020 sobre a União Europeia para legislar sobre maior controle das redes sociais (CEP, 2020, p.15).
A inserção do terrorismo jihadista na história francesa está tomando parte do caráter épico ao ser noticiado como um dos maiores desafios para o país desde a segunda guerra (CEP, 2020, p.02). Logo, para a conexão saber, poder e sujeito feita por Foucault, podemos ampliar a distribuição desse saber, como já observamos introdutoriamente, à outros discursos, à mídia, ao direito, às proposições morais, às instituições, o que este autor englobou no conceito de dispositivo (REVEL, 2005, p. 40), para além da “mentalidade” estudada por historiadores como Ferro, o dispositivo produz o sujeito através dos meios materiais concretos do social num todo, não somente o discursivo.
Não obstante a não introdução de necessários relativismos culturais ao currículo escolar, o Estado também pode falhar no auxílio às instituições que promovam o islã em toda a sua completude, a saber, não somente mesquitas, mas outros locais de estudo da cultura, organizações de caridade, que é fundamental para a religião, organizações com fins econômicos, seja uma rede de empregos ou financeira, já que os princípios islâmicos nesses assuntos podem divergir dos princípios liberais individuais. Por consequência, isso os deixou cativos do Estado como religião e manteve a imagem de distinção do resto da sociedade. As consequências do caso Paty serviram para Estado francês renovar esse seu princípio para a cultura muçulmana: se manifestarem apenas como religião e nunca politicamente[3]. A seguir como mostraremos como se deu esta captura.
A tutela da religião pelo Estado
Em 1905 o país fixou a lei que não permitia mais subsídios diretos aos cultos. Conforme Sampaio, a solução dos imigrantes muçulmanos fora então criar associações que não transparecessem caráter religioso, à época os imãs até se enquadraram como trabalhadores filiados ao regime de seguridade social ao invés dos programas para líderes de culto (2010, p. 39). Essa estratégia sanava problemas muito pontuais, atendia às necessidades de certo local, limitava-se a certo espaço, e mesmo depois da lei de 1981 para a liberalização de associações estrangeiras, o que aumentou os aportes para construção de locais de culto, ainda foram se formando inúmeras associações independentes em diversos níveis (local a federal) que na via contraria do que o Estado francês esperava possuíam cada vez mais autonomia e resistiam à tentativa de formar uma união coesa que representasse os muçulmanos no geral (SAMPAIO, 2010, 39-41).
A construção da Mesquita de Paris é o ponto de convergência dos interesses pela federalização interna do islã, o intento colonizador no exterior e a rivalidade com outras potências no controle do mundo muçulmano. Através da Argélia a França controlava a África muçulmana, portanto, a lei da laicidade tinha suas exceções no território. A transferência da maneira do trato argelino para a metrópole é bem representada na figura do presidente da Sociedade de Habous Si Kaddour Ben Ghabrit. Argelino a serviço do sultão de Marrocos ele presidia esta instituição que congregava ainda senegaleses e tunisianos, que contribuíam voluntariamente junto a financiamento estatal graças à conversão da Sociedade em associação conforme a lei de 1901 (SAMPAIO, 2010, 48 -49). Esse tipo de ação do Estado tornou a vontade já dispersa dos muçulmanos migrados cada vez mais em atitude passiva. O contínuo intervencionismo “pelas mais diversas justificativas (segurança nacional, vulnerabilidade do grupo em questão) acaba por estabelecer um tratamento distinto entre os cultos (logo grupos)” (SAMPAIO, 2010, p. 51) manteve-se o islã na França como algo distinto ao invés de fortalecer semelhanças para sua integração salutar.
Dentre as maiores associações do país estão a UOIF (Union des Organisations Islamiques de France), composta por vários líderes marroquinos, próxima à Irmandade Muçulmana, ela possui caráter mais ortodoxo, e seu financiamento é majoritariamente proveniente da Arábia Saudita e Golfo Pérsico; A FNMF (Fédération Nationale des Musulmans de France) também possui membros marroquinos, é menos estruturada que a IOIF, e está ligada ao governo saudita, diferente também da IOIF que se porta de forma ambivalente quanto à diretrizes internas e externas; e da parte turca o CCMTF (Comité de Coordination des Musulmans Turcs de France). Portanto, as tentativas anteriores guiadas pelos próprios muçulmanos de criar um conselho representativo esbarravam sempre em questões ideológicas, políticas e étnicas. Após esforços de ao menos dois governos, em uma iniciativa de investimento em pesquisa para obter maior número de dados sobre esta população e retirar-se assim da maior gama possível de assuntos da religião, surge em 2003 o CFCM – Conselho Francês de Culto Muçulmano, onde os representantes são eleitos por voto.
A grande questão para o CFCM e a totalidade dos muçulmanos na França é que todas essas representações religiosas estão decidindo por parcelas que podem ser muçulmanos de segunda e terceira geração que já se distanciaram do culto religioso, configurando os chamados muçulmanos seculares ou laicos, que permanecem associados pelos outros ambitos já mencionados da cultura islâmica. Cerca de 70% da população carcerária francesa é descendente de estrangeiros, por conta do processo estigmatizante que essa minoria sofreu, falta de programas de emprego, de habitação, educação que os deixaram à margem da sociedade (SAMPAIO, 2010, p. 65 – 66; MORAES, SANTOS, 2016, linha 9). Neste espectro se encontram muitas vezes os radicalizados.
É consenso na literatura que os radicalizados são predominantemente cooptados com auxílio remoto (EUROPOL, 2013, p.06; 2014, p.14). Dessa forma, poderá parecer estrategicamente errado visar apenas locais por onde este estrato de muçulmanos radicalizados não passa, as mesquitas e outras instituições religiosas, porém, quando o Estado visa os imãs e mesquitas é com consenso dos mesmos para a própria segurança, logo, mostraremos a seguir mais elementos que se combinam no interesse securitizante.
Segurança
O dispositivo de segurança amplia as ações possíveis do Estado, ou seja, medidas de exceção, dado que não participam de um arcabouço jurídico-disciplinar ou da legislação disponível, tentam, pelo contrário, extrapolá-lo cada vez mais (FOUCAULT, 2008, p.49, p. 59; WEAVER, 2000, p. 251). Por outro lado, as técnicas disciplinares do poder tem como objetivo recortar a multiplicidade, administrando-a como individualidades, o que implica tanto formas coercivas, como esquadrinhamento sistemático do tempo, espaço e movimento do indivíduo que visam suas atitudes, seus gestos, seus corpos (FOUCAULT, 2013b, p. 162-218) quanto da gestão política de aspectos biológicos da população, que é exatamente o resultado da multiplicidade recortada (FOUCAULT, 1988; 2008, passim). Desta forma, queremos mostrar nesta parte que a segurança pode estar se tornando uma nova forma de “integrar” a identidade muçulmana, em outras palavras, uma nova forma de governá-la, de adaptá-la, exigida pelo poder. Uma forma aprimorada de gerir suas demandas e contradições a colocá-las a jogar com seu meio dificultoso caso a assimilação pela federalização da religião permaneça insuficiente.
Conforme mostram os relatórios da Europol, a França tem um índice de prisões por ataques muito elevado em comparação a qualquer membro da União Europeia. Somente em 2015, das mais de 400 prisões em paralelo a 73 ataques, a França deteve 377 indivíduos por terrorismo jihadista e 44 por separatismo. A Espanha deteve respectivamente 75 indivíduos em cada categoria e o Reino Unido não especifica ao relatório as categorias de suas 134 detenções (EUROPOL, 2016, p.45). Nos anos anteriores pode-se observar o mesmo padrão nas prisões pelo Estado francês. Em 2013 foram 225 prisões em paralelo à 63 ataques, enquanto nenhum de seus vizinhos chega a 100 ataques perpetuados, mantendo Reino Unido e Espanha uma média de 30 prisões (EUROPOL, 2014, p. 15). Destas mais de duzentas prisões 143 foram por atentados inspirados em religião, em um ano em que nenhum ataque foi reportado no território europeu à Europol (2014, p. 46 – 49), e destes mais de cem detentos somente 20 foram julgados. Em 2014, são 238 prisões e 52 ataques na França; na Espanha e Reino Unido o número de presos não ultrapassa 150, no primeiro os ataques diminuíram para 18, no segundo cresceram para 109 (EUROPOL, 2015, p. 13).
Nestes anos a França concluiu 49 dos 225 casos em 2013; 36 dos 238 em 2014 e 14 dos 424 em 2015. Enquanto a média de julgamento da Espanha é respectivamente 141; 191 e 166. Já no Reino Unido são 52, 115 e 106 julgamentos emitidos em cada um dos anos (EUROPOL, 2016, p. 46). Em 2015, destas 14 conclusões apenas 5 foram por jihadismo, ao passo que a Bélgica emitiu 120 decisões (EUROPOL, 2016, p. 47). Em 2016 o número de sentenças sobe para 66 na França, mas só irá atingir a casa das centenas em 2017, sendo 120, dos quais 114 por jihadismo (EUROPOL, 2018, p. 58).
Além do diferencial para outras categorias de terrorismo de prender pessoas que estejam a caminho de combater nos países muçulmanos, pessoas com qualquer nível de vinculação com uma organização terrorista podem ser detidas por crime de associação, mesmo nunca tendo executado atos violentos. A association de malfaiteurs en relation aven une entreprise terroriste ou ATM pode resultar de 10 a 20 anos de prisão, 30 anos no caso de ser parte da liderança do grupo, e implicar na retirada da nacionalidade, caso não tenha completado 15 anos, e deportação (LOPES, 2016, p. 83). Podemos assumir que o Estado francês possui uma morosidade nos julgamentos, mas, em contrapartida, um mecanismo penal de prevenção do terrorista em potencial muito eficiente.
Poder-se-ia ainda dizer que o potencial do terrorista é realizado através dessa lógica punitiva, pois é sabido que a prisão em si é um acentuador de delinquência, não um solucionador. A Controladora Geral das Instalações de Custódia, Adeline Hazan, autoridade administrativa independente responsável por avaliar locais de custódia e transferência de prisioneiros, frisa que as autoridades públicas não levam em conta o risco prisional, a pressão dos mais fortes pelos mais fracos, o proselitismo, a superlotação e a falta de perspectivas de reintegração e alcance de um emprego (PREPARE, 2019, p. 06). Neste caso, recrutamentos e atentados podem ser tramados com a proximidade de agentes mais fortes (FOTTORINO, 2016, p. 84). A despeito desta observação, também se poderia investigar o interesse econômico privado nestas instituições, dado que, em certos países, quando não há a própria possibilidade de administração privada das prisões, consórcios de mão de obra podem ser acordados entre o Estado e as empresas, o que lhes poupa também de encargos com espaço e consumo de energia, por exemplo. Uma carga horária de trabalho muito longa pode atrapalhar que o prisioneiro opte por instrução educacional, bem como certos trabalhos autômatos e de baixa remuneração não colaboram em sua plena reinserção na sociedade, pois ao sair da prisão está submetido ao mercado comum, onde o estigma prisional favorece a exclusão.
Ao mesmo tempo em que as famílias querem se proteger, não querem que os filhos embarquem em uma aventura suicida. Não querem ver os filhos presos, mas ao mesmo tempo em que a prisão mancha as vidas dessas pessoas, muitas vezes também as salva, é um dilema mostrado no documentário Jihad Sisters, French women bound for ISIS (HUVER, LADOUS, 2017). Uma das soluções tentadas pelo Eliseu foi a construção de um centro para radicalizados em primeiro nível, mas mesmo não estando em persecução penal estas pessoas eram vistas como marginais pelos funcionários do local e pelos habitantes dos arredores[4]. Não obstante, os senadores tem cobrado demasiadamente o ministro do interior para que essa medida tenha um efeito de curtíssimo prazo, declarando-a como um fiasco, ao que o ministro responde como sendo uma confusão conceitual dos parlamentares ao pensar que medidas preventivas de longo prazo teriam o mesmo efeito que medidas combativas de curto prazo, ou seja, contraterrorismo[5].
A marginalidade social é somente agravante estrutural do problema, muçulmanos culturais podem ser alcançados em qualquer círculo social hoje em dia graças às redes. Suas insatisfações são usadas apenas como combustível, numa resposta fácil aos problemas individuais ou sociais o descendente acaba por fazer uma apropriação visceral do islã, ao contrário de um retorno racional e por escolha própria (cerebral) às suas origens (SAMPAIO, 2010, p. 82). Estas “origens” facilitadoras claramente não estão embebidas de realidade histórica e cultural, reforçando o argumento de que esse indivíduo não passa pelas mesquitas ou imãs; nem fisicamente, nem intelectualmente. Ele é cooptado muitas vezes por discursos paradoxais para a religião em seu caráter iconoclasta. Muita propaganda imagética é utilizada pelos terroristas para a radicalização (SOLER, 2016), se promete uma vida heroica, aventureira, se utilizam imagens de jogos, de filmes hollywodianos, de bens de consumo. Oliver Roy escreve um extenso artigo ao The Guardian (2007) relatando as vidas nadas religiosas desses agentes. Porém, o niilismo dos jovens franceses evocado frequentemente na explicação de Roy é considerável somente a partir do momento em que pode ser colocado a agir com o quadro estrutural de conflito social já descrito, que é habilmente manipulado pelos terroristas experientes.
Há uma causação psicossocial tal qual a que é aplicada por Kelman e Zartman aos conflitos internacionais (2007). Um padrão de ódio se forma por necessidades e temores, impossibilitando a racionalidade nas ações dos indivíduos, o diálogo, o conhecimento de componentes de mudança na subjetividade alheia e nas condições estruturais, dentre outros traços de estatificação do pensamento. O padrão de ódio se torna então como um buraco negro, ele atrai para si toda a perspectiva que guie o comportamento, Coleman (2011) chamou esses padrões cognitivos operando em sistemas sociais de atratores. A quebra de relações positivas é um fator aparentemente simples que corrói todo o capital social de um país, e se auto-organiza em uma estrutura que pode absorvê-lo em qualquer lugar, é como um câncer (COLEMAN et al., 2011, p.08). Atentemos para o fato de que o ódio não se volta somente contra a sociedade ocidental, mas contra a passividade dos muçulmanos para com esse ethos, logo, o ódio é contra tudo até mesmo contra o islã existente nessa sociedade.
Porém, mesmo assim, as mesquitas são muito visadas pela administração do Estado. São os primeiros locais a serem fechados, monitorados, e seus imãs alvo de aprimoração nos registros. Isso não é indesejável para os próprios muçulmanos, uma vez que estão vulneráveis a ataques de extremistas sunitas à mesquitas xiitas (estes são vistos como infiéis, bem como outros ramos menores do islã), e terroristas de extrema direita (EUROPOL, 2016, p. 23, 43), um efeito do crescimento do estigma da securitização. A elevação do terrorismo de direita contra as mesquitas, e até mesmo dos movimentos antimigratórios, que por serem vistos como movimentação pacífica não são facilmente desmantelados, pode nos mostrar que o efeito discursivo dos police makers está sendo efetivo ao instaurar uma ameaça existencial do ethos francês no país. A ameaça existencial dentro do próprio território é sobretudo uma concorrência socioeconômica, a identidade estranha é culpada pela defasagem do emprego, da previdência social, do salário (BRACANTE, REIS, 2009, P.83). Muito embora nacionais muçulmanos já em terceira geração e novos imigrantes sejam algo muito distinto, essa visão de concorrência reforça um estigma de não pertencimento do muçulmano à nacionalidade francesa.
A securitização aqui no caso, entendida como o dispositivo da segurança ampliado a sua esfera internacional, é o que vai recepcionando os diversos feixes, os diversos interesses, e convertendo em uma institucionalidade perversa. Conforme Foucault, movimentos tais criaram as prisões e os hospícios, que hoje nos parecem formas óbvias de tratar um problema (2006, p. 339 – 341). Economia de circulação criaram cidades. Economia do corpo criou o empregado fabril e o soldado. Com o maior fluxo global do capital relações privativas e produtivas hão de se alastrar sobre os territórios e os corpos sociais, é o que estamos descobrindo da pior forma. O Estado, que se retirou do pacto de soberania territorial para oferecer apenas a segurança à população (FOUCAULT, 2006, p.172), hoje se retira cada dia mais também do pacto de bem-estar social e governa enfaticamente pela oferta securitizante.
O modo com o islã vai sofrendo esta passivização pós-colonial ampliado para a sociedade internacional é semelhante. Dá-se por seu intrínseco turvar político-jurídico onde o sistema ocidental deve prevalecer sobre os demais, aos quais resta apenas uma assimilação indistinta. Ao passo que menos países muçulmanos venham a aderir às cortes internacionais menos chamadas ao Tribunal Penal Internacional de crimes cometidos na Síria e Iraque, por exemplo, serão possíveis, bem como o direito da sharia continuará ausente no Direito Internacional (NASSER, 2012; CUNHA, OBREGON, p. 52). Falta de condenações e crescimento de ações militares conjuntas jogam o terrorismo de Estado contra o terrorismo que o Estado determina a arma dos fracos, pois elimina civis de outros territórios, mina a governabilidade local e destrói a infraestrutura, que será reconstruída pelo financiamento estrangeiro.
O TPI poderia ainda julgar aquele que tenha cometido crime em território de Estado não signatário do Estatuto de Roma, caso seja nacional de um Estado signatário. Porém, o Estado francês não é exceção àqueles que deixam de trazer alguns dos seus nacionais de volta para a responsabilização internacional de seus crimes[6]. O Estado preza pela concretização dos valores universais, mas exclui de suas linhas constitutivas um vasto número de indivíduos, atirando-os à possibilidade de morte ou trancafiamento sem acusações formais, neste momento o indivíduo perde a nacionalidade, estão à vida nua ao contrato social (AGAMBEN, 2012).
Seja permitindo manifestações pacíficas dos discursos de extrema direita contra as minorias, baseados em liberdade de expressão, seja exacerbando o aparato de vigilância e penalidade sobre esta minoria, e se aproveitando do calor do momento para angariar capital eleitoral, em algum ponto da teia de formação de subjetividades construídas por esses interesses de poder há de surgir uma mentalidade de contraconduta perversa que pense que a morte do outro é merecida, mesmo que este sujeito não participe ativamente do extremismo político.
Referências
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SAMPAIO, Daniela Portella. Mulçumanos e França: formação de uma minoria e desafios para sua integração. Dissertação de mestrado em sociologia. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
SOLER, Marta Pons. “La analogia entre la radicalización islâmica y uma campaña de marketing exitosa”. Documento Opinión, nº 56, p. 726-742, 03/06/2016.
WAEVER, Ole. “The EU as a security actor: reflections from a pessimistic constructivist on post-sovereign security orders”. In: KELSTRUP, M.; WILLIAMS, M. C. (eds.). International relations theory and the politics of European integration. Power, security and community. Pp. 250-294. London: Routledge, 2000.
[1] EL PAÍS. “Macron estuda dissolver entidade islâmicas após decapitação de um professor perto de Paris”, 19/10/2020. Disponível em https://brasil.elpais.com/internacional/2020-10-19/macron-estuda-dissolver-entidades-islamicas-apos-decapitacao-de-um-professor-perto-de-paris.html Acesso em 04/02/2021
[2] Este termo é questionável, os relatórios da Europol modificaram o termo para terrorismo jihadista atualmente, “ao longo do tempo, vários outros termos foram considerados, incluindo, mas não se limitando a “jihadismo violento”, “militância islâmica”, e ‘terrorismo explorando e / ou abusando da religião’” (EUROPOL, 2016, p.53). O Reino Unido não o utiliza, fornece à Polícia Europeia informações não categorizadas sobre o terrorismo em seu território.
[3] RTF. “Macron cria conselho de imãs para evitar politização do islã na França”, 19/11/2020. Disponível em https://www.rfi.fr/br/fran%C3%A7a/20201119-macron-cria-conselho-de-im%C3%A3s-para-evitar-politiza%C3%A7%C3%A3o-do-isl%C3%A3-na-fran%C3%A7a (acesso em 14/02/2019).
[4] GATESTONEINSTITUTE, “França: Desradicalização de jihadistas é um ‘Total Fiasco’”, 22/03/2017. Disponível em https://pt.gatestoneinstitute.org/10105/franca-desradicalizacao (acesso em 10/09/2019).
[5] FRANCE. SENAT. Resultado de questões: terrorism, deradicalisation. Período: 2015 – 2019. Disponível em https://www.senat.fr/basile/rechercheQuestion.do?idRecherche=-4339462%3A176cbfe72b3%3A4fa1&unk=terrorism%2C+deradicalisation&dp=1+an&radio=deau&de=01%2F01%2F2015&au=30%2F12%2F2019&action=OK&rch=qs (acesso em 15/02/2021).
[6] RFI. “França não quer de volta seus combatentes jihadistas presos no Iraque e Síria”, 21/02/2017 disponível em https://www.rfi.fr/br/mundo/20170221-jihad (acesso em 03/02/2021).
O Observatório de Segurança Pública da UNESP é um portal da Internet que procura facilitar acesso às informações sobre Segurança Pública no Estado de São Paulo.