Eduardo Armando Medina Dyna[1]
No dia 06 de Maio de 2021 repetiu-se mais um fato de extrema violência na história brasileira. Na comunidade do Jacarezinho, localizada na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, uma operação policial resultou na maior chacina da história fluminense, com mais de 28 mortos e pessoas feridas. Essa ação policial foi repercutida nacionalmente e teve impacto internacional, visto o histórico da violência nas favelas cariocas e o momento atípico causado pela pandemia do Coronavírus.
Diante disso, o objetivo deste artigo é analisar o fenômeno das chacinas na sociedade brasileira, investigando o que elas são, além de analisar seus motivos, efeitos e relações, que produziram uma nova técnica de poder, a qual traz novos enfoques para estudos sobre segurança pública. Dessa forma, será explanada a fundamentação sobre as chacinas, abordando os principais massacres em território nacional.
Chacinas
As chacinas são atos de extrema violência, ocasionado pelo assassinado de muitas pessoas. No Brasil, os motivos são variados, tendo como foco o extermínio de pessoas periféricas (que em sua maioria são pessoas negras e pobres); a aniquilação de detentos e organizações de presos; ou a eliminação de militante e indígenas sob contexto de disputas de terras (DA SILVA SANTOS; RAMOS, 2019; DE LIMA VEDOVELLO, 2020). Essa prática se tornou muito comum, e foi naturalizada como um método violento simbolizado pela vingança, dominação ou uma forma de manifestação do poder.
A palavra chacina não tem uma conotação jurídica como homicídio ou latrocínio, sendo representada no âmbito jurídico como “homicídios múltiplos”. Chacina, portanto, é uma expressão popular que desencadeou um acúmulo de violência contra um grupo de pessoas estereotipadas, seja pela classe social, cor da pele ou ação política (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019).
Etimologicamente, a chacina tem um significado diferente do que popularmente se encontra. Ela representa uma técnica de abate de porcos em matadouros para possuir sua carne para fins alimentícios (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019, p. 13). Desta forma, houve uma ressignificação do sentido na ação, isto é, agora se designa chacina como matança de pessoas e não mais como “abate de porcos”. Essa mudança é cada vez mais alimentada pelos discursos que produzem o medo e pânico social através do sensacionalismo midiático e das distorções de fatos que produzem a violência generalizada na sociedade.
Além disso, ocorre uma disputa de narrativas que desenvolve discursos pautados em interesses para defender as ações policiais ou demonizar as vítimas, como forma de legitimar o extremo ato de violência. Visto isso, os sujeitos são categorizados como “bandidos” (FELTRAN, 2007), por um discurso moralizante que tenta justificar essas ações, como se a morte dessas pessoas fosse algo positivo para a sociedade, pois dessa forma há uma crença em que a bandidagem acabaria, como as autoras comentam:
Uma das questões que permeiam o que é ou não uma chacina, está não só no número de mortos em determinado território e efetuado pelo(s) mesmo(s) agente(s) por uma razão específica, mas ao olharmos para o que se coloca enquanto chacina ou não, temos as disputas sobre o sentido das mortes quando perpetradas por agentes de segurança pública em ações realizadas quando esses se encontram em serviço. (DE LIMA VEDOVELLO; RODRIGUES, 2020, p. 165).
A própria estrutura estatal deturpa os acontecimentos quando acontecem chacinas por parte da autoria de policiais, mudando a nomenclatura e alterando as narrativas sob a tutela policial: “Os do lado das políticas de segurança pública, através de seus órgãos oficiais, a denominação dessas ações como ações de contenção ou operações policiais” (DE LIMA VEDOVELLO; RODRIGUES, 2020, p. 165), portanto, quando se diz que uma chacina foi uma ação de contenção, passa-se um pretexto de defesa da força policial contra o ataque externo do bandido, que por muitas vezes é uma falácia.
Por outro lado, há um discurso promovido pelos movimentos sociais, intelectuais, grupos de direitos humanos e coletivos que defendem as vítimas e querem justiça pelas atrocidades cometidas. A narrativa protagonizada por esses setores analisa uma questão mais profunda e complexa, sobre um genocídio contra a população negra e pobre e/ou uma política de extermínio de classe por parte do Estado, fundamentada em diversas pesquisas nas áreas interdisciplinares como forma de romper com os discursos conservadores e oficiais (DE LIMA VEDOVELLO; RODRIGUES, 2020, p. 165).
Desta forma, o número alarmante de mortes ocasionados pelas chacinas, remete ao que a bibliografia chama de “espetacularização da morte”, em que a produção da chacina é a demonstração de poder dos acusados por meio da violência (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019, p. 15). A espetacularização sobre a chacina não se corresponde como algo no anonimato e nem como tentativa de se obstruir as forças da justiça. Muito pelo contrário, seu impacto é orientado ao ataque direto, sem uma preocupação de esconder sem uma preocupação em esconder a prática violenta e a partir da exposição cada vez maior, obtendo seu impacto e por conseguinte seu poder. Destarte, a chacina é uma prática de poder em que se utiliza da estratégia de extrema violência para alcançar algum objetivo, seja a dominação, vingança ou manifestação dos micropoderes soberanos (FOUCAULT, 2009).
Essa ação tem a finalidade de ser pública e visível, assim todos conseguem ver as dinâmicas do poder exercido como uma forma de suplício por parte dos responsáveis em relação ao seu inimigo (FOUCAULT, 2014). Diante disso, os estudiosos do tema sintetizam que:
Na maior parte das vezes, a chacina é um ritual de execução de pessoas tomadas como inimigas ou indesejáveis, realizado por assassinos mais ou menos anônimos. Nesse sentido, as chacinas podem ser interpretadas como mensagens públicas, com intuito de criar medo e temor a um público mais ampliado, e uma demonstração de poder e autoridade conquistado e/ou garantido por meio da violência letal. Na maior parte dos casos, as chacinas são ritualizadas, atos repetidos em diferentes casos, vestígios são estrategicamente deixados na cena do crime e a identidade dos assassinos ou dos mandantes circulam publicamente na forma de rumores. (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019, p. 13).
Além disso, a bibliografia consultada construiu uma classificação dos tipos de chacinas que caracterizam esse fenômeno violento. A primeira faz referência às chacinas que envolvem as disputas de poder entre os comandos de origem prisional (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019, p. 15), buscando o poder econômico do tráfico de drogas, o domínio de territórios ou vinganças internas dentro da estrutura dos grupos. A busca pelo poder econômico e o domínio de territórios entre as facções pode ser exemplificado pelas matanças entre 2016 e 2017 nos presídios do norte e nordeste (FERREIRA; FRAMENTO, 2019). Já as vinganças internas são comuns, relatadas por pessoas próximas as organizações (FELTRAN, 2007; LIMA, 2013; MOREIRA, 2012) que não fazem parte diretamente das dinâmicas das facções mas são atingidas apenas por serem parentes de membros, sintetizado como “os familiares de pessoas envolvidas com o tráfico e qualquer cidadão que resida em uma comunidade dominada pelo tráfico de drogas e que testemunhou uma chacina” (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019, p. 16), que são incorporadas e vítimas dessas ações.
O segundo tipo seria a repressão do braço armado do estado como uma resposta às ações de organizações de presos ou criminosos (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019, p. 15). Essa represália pode ocorrer oficialmente por parte de operações das polícias, como a operação castelinho em 2002 no interior de São Paulo, as que são feitas por policiais à paisana para não comprometer a instituição. Esta última é uma situação mais delicada, pois há uma relação entre policiais e grupos de milícias e/ou extermínio para punir e retaliar as periferias. Essa retaliação se encontra na forma de vingança de policiais mortos, na caça de indivíduos de facções ou até para eliminar a concorrência no tráfico de drogas, alimentando a corrupção da polícia para interesses próprios (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019, p. 16). A chacina na quadra da torcida organizada do Corinthians “Pavilhão 9” em 2015 foi um exemplo em que um policial à paisana matou inúmeras pessoas devido ao tráfico de drogas (DE LIMA VEDOVELLO, 2020).
O terceiro tipo envolve rebeliões em presídios com as forças de segurança pública reprimindo o motim para retomar a ordem e o controle nas prisões (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019, p. 15). Essa ação, normalmente coordenada pelas polícias militares ou carcereiros, foi cometida várias vezes na história do Brasil, sendo o episódio do massacre do Carandiru em 1992 o caso mais emblemático.
A última classificação sugerida pelos autores, é por parte de conflitos no universo rural e também pode ser considerado no contexto urbano (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019, p. 15). Esse tipo de chacina se diferencia dos três últimos, pois o tema sobre terra e trabalho estão mais evidentes do que problemas como o crime, tráfico ou polícia. Normalmente são revelados como disputas entre fazendeiros/ruralistas e organizações de trabalhadores rurais e/ou indígenas, nas quais os primeiros querem privatizar a terra dos últimos, promovendo o enriquecimento do agronegócio e o extermínio dessas resistências[2].
Após tudo que foi exposto, é de suma importância destacar que as chacinas são heterogêneas, elas não têm as mesmas causas, efeitos, sujeitos, impactos e territórios. Elas são demonstrações das relações de poder entre dois ou mais grupos antagônicos, sejam facções rivais disputando o comércio de drogas; vinganças, realizações ou exterminação da polícia e milícias contra a população periférica; repressão das forças policiais contra a sociedade prisional rebelada ou disputas entre fazendeiros contra camponeses e indígenas.
Outro ponto importante a ser ressaltado é a questão dos territórios e espaços onde são cometidas as chacinas. Para aprofundar essa questão, Haesbaert (2004) se torna uma grande referência em seu estudo sobre processos de territorialização e desterritorialização para entender as questões entre a ação e o espaço. Para o autor, o território pode ser enquadrado de uma maneira polissêmica e interdisciplinar, tendo quatro macro dimensões: a-) política: são as configurações do controle de um poder nos territórios, existindo portanto um ou mais poderes soberanos em disputas, portanto uma disputa de poder pelo território; b-) cultural: são as relações simbólicas e subjetivas construída pelos nativos do local em relação ao espaço; c-) econômica: são os elementos das relações de recurso, produção e circulação de mercadorias entre as classes sociais; d- natural: tendo como um sentido filosófico da ontologia humana pelo apelo do espaço físico (ALMEIDA, 2014, p. 75)
Por meio disso, os territórios chacinados encontram-se com características políticas e econômicas. Na dimensão política, as rivalidades entre os grupos antagônicos geram a busca pelo controle dos territórios para a dominação, tentando eliminar o poder inimigo, alcançando a soberania que, por muitas vezes, faz da população inocente o seu poderio. Os exemplos sobre essa dimensão já supracitados são as chacinas cometidas pelas facções ou pelo braço armado do estado. Já pelo viés econômico, as dinâmicas da produção e do comércio são um dos fatores principais que fazem os territórios serem alvos da cobiça pelo poder político e econômico em busca do lucro. As chacinas nas áreas rurais e indígenas são as mudanças da essência do território, em que para um grupo não há uma questão de rentabilidade, apenas no sentido natural do território e do outro a pretensão do dinheiro.
Assim sendo, não há como definir um território como neutro, pois os indivíduos inserem nele os seus interesses, disputas e representações, transformando-o em movimentos, (ALMEIDA, 2014; HAESBAERT, 2004). São as relações de poder que movimentam as chacinas e formalizam as consequências da violência nos territórios em mudança. Isto posto, as chacinas nos territórios estão em constante deslocamento, nunca fixadas as ações em um mesmo local.
Essas relações de poder são demonstradas através da forte violência das chacinas, que correspondem a uma desumanização das vítimas (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019, p. 18) e à espetacularização das mortes feitas pelos discursos conservadores e punitivos atreladas ao sensacionalismo midiático, o que leva a uma justificação das mortes por estarem ou não na ilegalidade do crime (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019, p. 19). Essa justificação é atribuída apenas pela palavra dos autores que são o conteúdo predileto para a naturalização dos discursos feitos pela mídia (COSTA, 2009). Dessa forma , a banalização das mortes é colocada em prática pelos discursos, criando uma disciplina da desumanização contra os inimigos oficiais das forças conservadores, como explicam os autores:
Nesse discurso está presente uma idéia bastante recorrente no país: para determinada parcela da sociedade, o Estado de Exceção é a regra e a violência letal é um expediente legítimo de resolução de conflito. A falta de investigação dos casos de chacinas, bem como de homicídios em geral, reforça a sensação de banalidade das mortes. (DA SILVA; SANTOS; RAMOS, 2019, p. 18-19).
Concluindo, as chacinas não são algo novo e nem exclusivo de um agrupamento específico, contudo, são uma tática complexa de estratégias de poder baseada na violência que alimenta os discursos da sociedade, produzindo mais um problema entre vários que marcam a segurança pública.
Principais chacinas no Brasil:
Como supracitado, as chacinas não têm uma conotação técnica jurídica, podendo ser abrangida como múltiplos assassinatos. Por meio disso, já ocorreram centenas de casos na história recente, em todas as regiões do Brasil. Destarte, serão elencadas as principais chacinas com mais repercussão, impactos e críticas da sociedade, analisando suas especificidades e consequências, e tendo como foco as chacinas nas periferias, nas prisões e no campo.
Chacina do Carandiru – 1992
A chacina do Carandiru, que ocorreu em outubro de 1992, foi a maior chacina das prisões brasileiras, tendo o registro de 111 mortos segundo a polícia. Entretanto, esse número é contestado por pesquisadores, grupos de direitos humanos e pelos próprios presos, que, ao avaliarem os impactos do episódio, calculam o dobro das mortes em relação aos dados da instituição (MACHADO; MACHADO, 2015; ONODERA, 2007; SALLA, 2007; VARELLA, 2005).
A causa foi uma rebelião, oriunda de uma briga entre dois detentos no interior do pavilhão 9, que provocou uma desordem generalizada e a convocação das forças ostensivas dentro da cadeia. Segundo Onodera (2007), foram mais de 300 policiais com armamento pesado que invadiram o espaço e iniciaram a maior carnificina dos presídios, sem direito a defesa e julgamento. A repercussão internacional foi negativa, denunciando o extermínio e tortura dos presos pela mão do Estado.
Os setores conservadores tentaram legitimar essa ação, argumentando que este era o papel dos policiais, sendo favorecidos por um fato político no contexto das eleições que aconteceram no dia seguinte dessa chacina. O único condenado dessa ação foi o coronel Ubiratan Guimarães, homem responsável por coordenar a operação policial no Carandiru. Ele foi condenado a mais de 600 anos prisão por conta das mortes de 102 detentos e a tentativas de outros 5 presos, porém, com respaldo dos setores da sociedade e do governo, foi conseguindo recursos da justiça e não chegou a cumprir a sua pena (MACHADO; MACHADO, 2015; ONODERA, 2007). Além disso, ele conseguiu se eleger como deputado[3] no final da década de 1990 e início dos anos 2000, um exemplo da impunidade e banalização das mortes das chacinas.
Chacina da Candelária – 1993
A chacina da Candelária foi um massacre que chocou o Brasil em 1993. Em julho daquele ano, 8 adolescentes e crianças foram mortos e uma dezenas foram feridas enquanto dormiam na frente da igreja da Candelária, na região central do Rio de Janeiro. As vítimas tinham entre 11 e 19 anos e moravam nas ruas daquela região. (TERRA, 2018). Os assassinos passaram de carro momentos antes do massacre, já com a intenção de cometer o crime. Após as investigações, descobriram que os acusados eram ligados a milícias, sendo 3 policiais militares na ativa e um outro expulso do batalhão policial. Os motivos são trabalhados em duas hipóteses, a primeira um acerto de contas por causa da venda do tráfico de drogas na região e a segunda para exterminar as crianças e adolescentes que supostamente teriam gerado problemas aos policiais e moradores.
Um sobrevivente conseguiu denunciar os acusados, sofrendo ameaças e tentativas de assassinato meses depois, o que levou a um pedido de proteção em 1995 para o então presidente da república, se mudando para a Suíça após a solicitação. Dos 4 acusados, 3 foram condenados a mais de 200 anos de reclusão, porém, após 20 anos de pena, eles conseguiram as prerrogativas e estão em liberdade. Já o outro acusado, foi morto durante as investigações, o que levantou suspeitas sobre “queima de arquivo” (SILVEIRA; BOECKEL, 2015).
Chacina do Vigário Geral – 1993
No mês seguinte à chacina da candelária, houve mais um massacre na cidade do Rio de Janeiro, mas agora no Vigário Geral na zona norte. Em agosto de 1993, 21 moradores do Vigário Geral foram assassinados por um grupo de extermínio com 30 integrantes contando com policiais e ex-policiais militares que invadiram a região com o objetivo de matar aleatoriamente. Esse episódio foi mais um exemplo das chacinas nas regiões periféricas das grandes metrópoles e as vítimas têm o mesmo perfil: pessoas pobres, negras e periféricas (ALCÂNTARA, 2019; BOECKEL, 2018).
O motivo que gerou esse massacre foi a morte de 4 policiais na semana anterior, em que alguns indivíduos ligados à criminalidade da região atraíram os policiais e os assassinaram, em diferentes endereços do bairro. Todas as vítimas dessa chacina não tinham nenhum envolvimento com a criminalidade e nem eram ligadas às facções, o que se traduz na chacina como uma ação de vingança dos policiais/grupos de extermínio e uma demonstração de poder e impunidade. Com a repercussão extremamente negativa – haja vista que foram duas chacinas em pouco menos de um mês de diferença – a Organização dos Estados Americanos (OEA), neste mesmo ano, levou o Brasil ao banco de réus para o julgamento pela violação dos direitos humanos dos brasileiros nas periferias e favelas do Rio de Janeiro (ALCÂNTARA, 2019; BOECKEL, 2018).
Ao total foram acusados 52 indivíduos com envolvimento na chacina, muitos com formação policial que trabalhavam na segurança pública da cidade fluminense. Desses acusados, dezenas foram absolvidos e voltaram para o serviço policial. Apenas alguns foram condenados, com penas que passam os 100 anos e os assassinos foram expulsos da polícia militar do Rio de Janeiro (ALCÂNTARA, 2019; BOECKEL, 2018).
Chacina de Eldorado do Carajás – 1996
O caso do Eldorado do Carajás no estado do Pará em 1996 foi um massacre em decorrência das disputas por terra entre camponeses e trabalhadores sem-terra contra grandes latifundiários, que terminou com a morte de 21 pessoas e aprofundaram o debate sobre a reforma agrária. Esse fato teve fortes repercussões políticas, com a demissão do então ministro da agricultura e muitas críticas internacionais sobre a violência camponesa no Brasil. (BARBOSA, 2021).
O contexto desse episódio se deu pela repressão violenta da polícia militar no acampamento dos trabalhadores rurais sem terra. Esses trabalhadores pressionavam os órgãos superiores para a partilha de uma fazenda improdutiva através da reforma agrária, todavia, uma reviravolta não concedeu o aval das terras da região alegando a produtividade do local, e dessa forma a legitimação do território a favor dos latifundiários. Como consequência, o movimento dos trabalhadores acampou na região, e as forças de segurança reprimiram a ocupação.
O acampamento tinha milhares de pessoas. No dia da chacina, cerca de 150 policiais militares efetuaram a dispersão e repressão aos trabalhadores, matando com tiros à queima roupa e uso de faca e facão. Esse episódio ficou conhecido como uma das maiores chacinas relacionadas à questão da terra e a luta entre os latifundiários e os campesinos (BARBOSA, 2021).
Chacina do Castelinho – 2002
A operação Castelinho em 2002 foi outro exemplo da letalidade da PM que proporcionou mais uma chacina em São Paulo. Em uma emboscada, policiais civis deixaram veículos no meio da rodovia estadual e cercaram 12 homens suspeitos de serem da facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), que estavam viajando em veículos. Esses indivíduos foram assassinados sem confronto direto, gerando críticas dos grupos dos direitos humanos e da oposição pela forma de atuação dessa operação.
A narrativa policial tentou justificar o massacre como uma tentativa de burlar os planos do PCC. Porém, investigações de autoridades competentes estimularam que toda operação foi planejada e que o objetivo principal era a morte de todos os integrantes do PCC que estavam nesses veículos. Segundo o Ministério Público, a operação castelinho foi uma armadilha contra a facção que contou com a participação de dezenas de policiais e outros profissionais de segurança pública que orquestraram a chacina.
No ano de 2003, foram denunciados 55 indivíduos que participaram do massacre, como aponta a reportagem: “vão responder por homicídio triplamente qualificado (motivo fútil, meio cruel e emboscada) e, em determinados casos, por roubo de duas caminhonetes e fraude processual (sumiço de provas e modificação do cenário do crime)” (ÚLTIMO SEGUNDO/IG, 2003, p.1).
As autoridades policiais que administraram essa operação foram julgadas, entretanto, anos depois os suspeitos foram liberados das acusações por setores da justiça paulista. Esse caso foi um dos primeiros conflitos públicos entre o PCC e as polícias paulistas. A impunidade e a justificativa da extrema violência da ação se tornou uma normalidade, naturalizando a violência policial contra tudo que é suspeito na visão do Estado.
Chacina em Várzea Paulista – 2012
A chacina em Várzea Paulista, cidade da região metropolitana de São Paulo, foi um massacre promovido pela tropa de elite da polícia militar de São Paulo, a Ronda Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), por causa de um suposto conflito entre os policiais e criminosos ligados a facção paulista, o PCC (G1, 2012). Nesse confronto, 9 indivíduos foram mortos (todos tidos como criminosos), o que acarretou muitas críticas das organizações dos direitos humanos pela forma da ação do trabalho policial, em razão de ter apenas uma única narrativa proposta pela ROTA sobre o ocorrido, algo diferente dos elogios recebidos pelos setores conservadores e do poder do Estado de São Paulo.
Segundo as forças de segurança pública, os policiais chegaram a um local específico de Várzea Paulista, em que os indivíduos estavam em uma seção do “tribunal do crime[4]” e foram recebidos a tiros, o que foi revidado pelos policiais da ROTA (G1, 2012). Esse episódio ocasionou em confrontos durante o ano de 2012, além de desencadear a guerra entre o PCC e as forças estatais de segurança pública.
Chacina em Osasco – 2015
A maior chacina – fora dos presídios – do estado de São Paulo foi realizada na grande SP, mais especificamente nas cidades de Osasco, Barueri e Itapevi, deixando no total 23 mortos e alguns feridos, impactando toda região. Segundo as informações, a autoria dessa barbárie foi cometida por policiais e guardas civis municipais, e o motivo foi uma vingança por conta do assassinato de dois profissionais da segurança pública dias antes desse ato. Na semana anterior dessa tragédia, esses agentes de segurança pública foram mortos, em decorrência de uma execução no dia 08/08/2015 (UOL, 2015) e uma tentativa de assalto no dia 12/08/2015 (G1, 2015).
Os locais do crime foram as regiões periféricas dessas cidades. Os acusados se dirigiram a bairros que tinham alguma ligação da morte dos profissionais e dispararam aleatoriamente contra pessoas que enquadram no estereótipo de “criminoso”, indo de encontro às pesquisas de Misse (2010) sobre a construção do “sujeito bandido” no Brasil. Isto posto, mais da metade das vítimas não tinham passagem pela polícia e nenhuma tinha envolvimento com alguma facção (G1, 2015).
Assim, esse episódio foi um exemplo de uma demonstração de poder de indivíduos que faziam parte do braço armado do Estado, e utilizaram das prerrogativas da autoridade policial para vingar – sem qualquer condição de investigação e julgamento – moradores inocentes que não tinham relação com a infeliz fatalidade dos profissionais de segurança pública mortos. Os acusados foram expulsos da corporação policial, condenados em júri popular, todavia, após 6 anos do caso, esse episódio ainda está sob julgamento da justiça.
Chacina de Pau D’Arco – 2017
A chacina de Pau D´Arco foi cometida no ano de 2017 no estado do Pará, onde 10 trabalhadores rurais sem-terra foram assassinados pela polícia militar e civil em uma operação que resultou nessa tragédia (G1, 2017). Dentre os mortos, 9 homens e 1 mulher que residiam no local. Esses trabalhadores estavam ocupando uma fazenda improdutiva com dezenas de famílias que lutavam pelo direito à terra, sob o contexto maior das disputas históricas dos movimentos campesinos contra a regalia dos latifúndios improdutivos (G1, 2021).
Os policiais cumpriram mandado de prisão preventiva de 14 pessoas que ocupavam a área. Houve uma disputa de narrativas sobre o caso. Segundo a versão dos policiais, eles entraram no território assentado e foram recebidos a tiros pelas famílias, entretanto, os trabalhadores relataram que a polícia veio com o objetivo de matar e acabar com a ocupação (G1, 2021). Além disso, havia disputas judiciais para o despejo dessas famílias por parte dos fazendeiros. Esse caso ainda está em procedimento judicial, com 16 acusados encaminhados a júri popular e muitas tensões envolvendo a questão da terra.
Chacina guerra das facções – 2017/2018
As chacinas nas prisões no norte e nordeste em 2017 e 2018 inauguraram uma nova fase dos desdobramentos das organizações dos presos. Por causa da guerra entre facções como o PCC, Comando Vermelho (CV), Família do Norte (FDN), Sindicato do Crime (SIN-RN) entre outras, foi cometido um banho de sangue com dezenas de mortos e decapitados nas prisões do Amazonas, Acre, Rio Grande do Norte, chocando a opinião pública pelos suplícios, a espetacularização das mortes e do evento.
O estopim para essa guerra foi o fim da união entre o PCC e o CV por conta do controle de drogas na fronteira entre o Brasil e o Paraguai em 2016. Assim, nos primeiros dias de 2017 e posteriormente em 2018, houve uma reorganização nas cadeias direcionada às facções, separando presos que eram membros ou simpatizantes dessas organizações, o que culminou com rebeliões a fim de invadir os pavilhões opostos nos quais se encontrariam os inimigos de outros comandos.
Essas chacinas iniciaram uma nova ruptura na história das organizações dos presos, haja visto que os motins não eram pautados por melhorias para a população carcerária ou denunciando as contradições e arbitrariedades do sistema penal, e sim o extermínio de rivais na lógica do crime. A maioria das mortes foi cometida por objetos cortantes, pedaços de ferro ou ferramentas construídas manualmente para serem armas de guerra. E quando finalizado o objetivo, a decapitação e desmembramento eram tidos como demonstração de poder e vitória.
Conclusão
Como observado, as chacinas no Brasil são múltiplas e heterogêneas, não havendo uma clareza conceitual no âmbito jurídico, podendo ser caracterizadas como massacre ou “assassinato multiplos”. As ações das chacinas podem ser entendidas como uma vingança, suplícios e demonstração de poder,eliminando rivais (como nas chacinas ocorridas pelas facções nos presídios do norte e nordeste), matando indivíduos mais marginalizados (como nas chacinas de Osasco e da Candelária), ou assassinando trabalhadores rurais assentados (haja visto as chacinas de Eldorado de Carajás e Pau D’Arco).
A chacina do Jacarezinho é mais um triste episódio, fruto de uma operação policial que eliminou indivíduos sob suspeita de serem ligados à criminalidade. Ainda há de se esperar as conclusões sobre esse triste episódio, mas esse fato não é isolado, e sim fruto de uma história sangrenta e violenta, que naturaliza a barbárie em nossa sociedade e gera debates dentro do campo da segurança pública.
Referências Bibliográficas:
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[1] Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) “Júlio de Mesquita Filho”, na Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) de Marília/SP, Brasil. Graduado em Ciências Sociais (bacharelado/licenciatura) pela mesma instituição. Pesquisador do Observatório de Segurança Pública, atuando com as linhas de pesquisa sobre questão urbana, crime organizado, tráfico de drogas, polícia, periferias e segurança pública. E-mail para contato: eduardo.dyna@unesp.br.
[2] As chacinas contra os trabalhadores rurais de Pau D’Arco no Pará em 2017 e contra os indígenas ianomâmi em 2012. São dezenas de chacinas contra camponeses e indígenas configurando o grupo mais atingido pela extrema violência.
[3] Ele foi eleito deputado em 2002 sob o número da legenda eleitoral 14.111, uma associação direta com os 111 mortos do massacre de 1992.
[4] O “tribunal do crime” ou debates são elementos em que organizações criminosas administram, julgam, punem e organizam a sociabilidade em que eles estão, construindo regras, normas e condutas próprias, isto é, novas formas de justiça privada feitas pelas facções, que abandonam os parâmetros legais do Estado.