Neurodivergência e cultura na escola: uma proposta para dialogar entre diferenças

Maria Eduarda de Moraes Torres [1]

“Tchau, professora! Obrigado por tudo!”. Foi assim que Júlio se despediu de mim depois de um dia borbulhante na sala de aula em que rastejamos por debaixo de cadeiras, desenhamos, entramos em conflitos e fizemos as pazes diversas vezes e trabalhamos até com atividades de minecraft. Há três meses nos encontramos de uma forma particular e desafiadora. Do nosso encontro, surgiram algumas ideias que podem ser compartilhadas. Com essa intenção, neste ensaio, busco apresentar a possibilidade de entender a neurodivergência como cultura na escola e, mais especificamente, na sala de aula.

“Neurodivergência” é um termo amplo. Suas possíveis definições, como “Que ou quem possui um funcionamento cerebral e comportamental que abrange várias diferenças neurológicas relativamente aos padrões considerados normais.”(Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/neurodivergente), tem, em si mesmas, o fato de que se define o divergente a partir de uma referência de normalidade, de regra. A partir dessa regra, nomeiam-se as diferentes condições neurológicas como a dislexia, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH).

Esses nomes, ou diagnósticos, acompanham diferentes condições de aprendizagem e de entendimento do mundo. Entretanto, muitas vezes, também acompanham a padronização de comportamentos e de expectativas por nós, adultos, em relação às crianças. A estereotipia, por exemplo, os movimentos repetitivos comuns em estudantes que recebem o diagnóstico de TEA, pode ser entendida como um processo de “autorregulação” das emoções. Enfim, em geral, associar manifestações físicas e emocionais específicas dos sujeitos com características dos seus respectivos diagnósticos, é algo comum – que também está presente na literatura especializada sobre o assunto.

Porém, mesmo reconhecendo que determinados comportamentos permeiam o cotidiano dessas crianças e que os diagnósticos possibilitam entendê-los, proponho uma reflexão sobre essas associações imediatas. Ao colocar como finalidade das ações dos sujeitos as suas condições neurológicas, pode se esgotar um terreno de inúmeras possibilidades de trocas de significados e de construções de vínculos no processo pedagógico.

“Júlio faz isso porque é autista” é um exemplo de como os modos de ser de estudantes neurodivergentes são entendidos pela comunidade escolar. Essa é uma conclusão quase imediata que eu tive ao me deparar com determinados comportamentos de Júlio, sendo uma cientista social atuando como assistente pedagógica pela primeira vez, dando suporte para uma criança neurodivergente.

Ao sermos colocados em contato, Júlio se apresentou para mim com as suas experiências prévias e eu, com as minhas. A minha, com estudantes neurodivergentes, era quase nula. Acho que a de Júlio, com cientistas sociais, também. Mesmo em minha falta de jeito, gostaria que a minha disponibilidade para o ouvir fosse a mesma oferecida para todos os outros estudantes com quem já trabalhei. Ouvir o Júlio, para mim, significou remover o fim daquela frase “Júlio faz isso porque é autista” e me questionar: por que Júlio faz isso?

Dizer que na escola e na sala de aula deve-se ensinar e aprender parece ser algo que todos estamos de comum acordo. Entretanto, as ferramentas da licenciatura e da pedagogia não pareciam ser suficientes para concretizar o meu objetivo com Júlio ou entender os motivos de seus comportamentos. Além disso, o seu “estar” na sala de aula parecia corresponder a acompanhar os rituais do cotidiano escolar, copiar palavras (bem contrariado) ou estar presente em atividades coletivas, mas sem estar.

Observando esse cenário, busquei, então, em minhas ferramentas, o que poderia servir para que pudéssemos dialogar. Ao tentar conhecer uma realidade totalmente distinta da nossa, uma língua diferente, e modos de ser e de se comportar não similares aos nossos, aos cientistas sociais cabe recorrer ao método etnográfico. Retomando autores da Antropologia e experiências anteriores de trabalho de campo em escolas, me veio a ideia de elaborar um diário de campo do meu cotidiano com Júlio, buscando compreender os significados de seus símbolos, gestos e dizeres descrevendo as nossas interações e os nossos entornos frequentemente e detalhadamente.

Abordar as relações pedagógicas dessa forma significa entender esse universo distinto, como o de Júlio, como uma cultura. De uma conclusão circular, fechada em um diagnóstico, passei, com isso, a ter mais possibilidades de atuação. O diário de campo ficou repleto das falas de Júlio que guiaram as minhas intervenções e, também, questionamentos sobre o meu comportamento – muitas vezes marcado por expectativas do mundo adulto não-divergente, permeado por regras que, é preciso dizer, foram inventadas por esse próprio mundo.

As falas de Júlio, registradas em meu diário, não se referem necessariamente à comunicação verbal. As nossas conversas nem sempre se deram por palavras e ocorriam, muitas vezes, por diversas expressões físicas e artísticas trocadas no cotidiano da sala de aula. As estereotipias mencionadas anteriormente, por exemplo, foram entendidas, por mim, como expressões de emoções e pensamentos. Buscando dar atenção a tudo e observar todos os detalhes, por tentativas e erros, e com um processo de tradução, tentei criar uma espécie de reflexo: o que do mundo de Júlio correspondia ao meu mundo?

Essas traduções foram necessárias para tentar construir um mundo nosso, comum. Parte disso foi observar seriamente coisas que o interessavam, como desenhar e pintar. Os desenhos e pinturas de Júlio foram lidos, por mim, como pinturas surrealistas – aquele tipo de arte que não importa muito para o artista que entendamos os significados dos símbolos colocados ali, mas que, todavia, expressa uma imensidão de sentidos de um universo particular.

Compreendendo isso como um tipo de constatação do momento em que estávamos em nosso processo pedagógico comecei a me questionar como, então, passar para um outro momento, em que Júlio quisesse e pudesse dividir seus símbolos. Afinal, a leitura e a escrita, como parte da experiência humana, têm como fim a comunicação e nós buscávamos alfabetizar Júlio.

Júlio deixava escapar elementos que puderam ser traduzidos por mim em seus desenhos e comentários e, assim, comecei a valorizá-los. Nossas conversas e atividades passaram a ser sobre os Minions, o Bob Esponja, entre outros desenhos infantis e jogos que eram parte de seu cotidiano fora da escola. Com a ajuda dos alunos e das professoras, consegui identificar de onde era alguma música que Júlio estava cantarolando ou de onde era um desenho que não fazia parte do meu repertório.

A valorização desses símbolos não foi feita seguindo um caminho pedagógico “tradicional”. Ao contrário, foi uma experiência bem particular, oportunizada por estar em uma sala de aula com outras três professoras. Para além das condições materiais, o “estar” na escola e na sala de aula de Júlio foi desafiador, também, porque inverteu uma característica muito presente no processo pedagógico: a professora propõe e o aluno faz. Ao contrário, para Júlio, as atividades propostas nunca foram efetivamente realizadas. O que construímos juntos foi feito a partir de oportunidades oferecidas pelo próprio Júlio. Após dar ênfase para o seu contato com seus interesses em sala de aula, algumas perguntas começaram a ser verbalizadas por ele: o que são os planetas? Vamos fazer um livro de papel, com capítulos? Vamos fazer os emojis hoje? Vamos fazer uma atividade de minecraft?

Ontem, no final de um dia cheio de desafios e trocas, a última coisa que fizemos foi um livro, em forma de fanzine, uma cópia do gibi “História do Brasil” da Turma da Mônica. Pela primeira vez, após terminar de desenhar os personagens e copiar algumas palavras do gibi, Júlio me perguntou: “O que está escrito?”. As conclusões de uma observação-participante tão particular são difíceis de se generalizar e, no tempo em que estamos trabalhando juntos, ainda estão bem abertas. Entretanto, parece que Júlio está, enfim, produzindo algumas atividades que possuem um significado compartilhável comigo e com o resto da turma.

Desse modo, compartilhando essa experiência, enfatizo que olharmos para a neurodivergência como olhamos para a cultura pode demonstrar que o diálogo entre as nossas diferenças é possível. Entretanto, também apresenta que é preciso reconhecer qual é o tipo de disponibilidade e esforço que devemos protagonizar para que o diálogo aconteça. Além disso, não se deve olhar para a neurodivergência como cultura porque esta é, em si, uma cultura. Mas porque entendê-la dessa maneira significa apostar nos infinitos significados humanos que se encontram em mundos particulares (e também sociais) dos nossos estudantes e que podem ser perdidos se não os ouvirmos. Afinal, desperdiçar experiências humanas não está em questão, e isso é uma postura pedagógica e política.

[1] Mestranda em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Graduada em Ciências Sociais pela Unesp de Marília. Integrante do Observatório de Segurança Pública e Relações Comunitárias (OSP), do grupo Feminismos: práticas e resistências (Feres) e do Laboratório de Ensino e Pesquisa Educação e Sociedade (LEePES). Contato: mem.torres@unifesp.br

Texto produzido para o curso Seminários de Pesquisa da graduação em Ciências Sociais na Unesp de Marília em 2023. Os nomes são fictícios e a reflexão parte de um relato de experiência.

Ilustração: Joanna Varró

Mestranda em Ciências Sociais na UNIFESP, com interesse e experiência em pesquisa, ensino e extensão direcionados à juventude e educação e em debates sobre as relações de gênero, étnico-raciais e classe. Graduada em Ciências Sociais (licenciatura e bacharelado) pela Unesp de Marília. Integra o OSP (Observatório de Segurança Pública), também da Unesp de Marília, como uma das integrantes do projeto de extensão "Gênero, feminismos e violência: dialogando com a comunidade escolar de Marília e região" do grupo FERES (feminismos: práticas e resistências). Também faz parte do LEePES (Laboratório de Ensino e Pesquisa Educação e Sociedade) da Unesp de Marília.